As mentiras da saída do euro

 Portugal vai trocar o euro pelo novo escudo, desvalorizar a sua nova moeda para poder ser mais competitivo, salvar o estado social, acabar com a austeridade, recuperar a sua soberania monetária e convergir com a União Europeia. Não é por acaso que está a ler isto a 1 de Abril.
É dia das mentiras e talvez seja a ocasião certa para olharmos para algumas supostas evidências de que tentam convencer-nos nos outros 364 dias do ano.

#1 Basta trocar de moeda para sair do euro?

Não. A saída do euro, isoladamente, não existe. Não há nenhum “tratado do euro” de que um país possa sair, mas apenas os Tratados da União Europeia, de que se sai utilizando o artigo 50TUE. Trocar de moeda sem denunciar esses tratados corresponderia ao que habitualmente se chama de “saída desordenada” e não é sequer uma saída. Nesse caso, Portugal correria o altíssimo risco de a nova “moeda” não ser reconhecida pelos tribunais nacionais, europeus ou internacionais, não ser registada pelo sistema de códigos de divisas da ONU, não ser conversível e não poder ser utilizada para comprar bens, serviços ou pagar dívidas.

#2 E não podemos sair do euro sem sair da UE?

Nos termos atuais, não. A única saída ordenada que depende inteiramente de Portugal é a saída da União Europeia, que demoraria no mínimo dois anos e constituiria um pré-aviso de desvalorização que convidaria os mercados internacionais a especular contra Portugal. Mas nesse caso, Portugal sairia de muito mais do que do euro: estariam em jogo a cidadania europeia dos mais de dez milhões de portugueses e os seus direitos associados, tal como o direito de residência de mais de um milhão de portugueses que passariam a ser extra-comunitários nos países da UE e EFTA; estaria em jogo o mercado mais importante para as exportações portugueses; estariam em jogo, enfim, todos os elementos da participação de Portugal na UE, desde o acesso aos fundos comunitários até à participação em cooperação académica, científica, de justiça ou de segurança.

#3 Portugal não pode ser um dos países que não tem de estar no euro?

Na prática, é muitíssimo improvável. O Reino Unido e a Dinamarca não têm de participar no euro porque usufruem de uma exceção (chamada “derrogação especial”) aprovada por todos os países da UE no próprio texto dos tratados. Para Portugal ou qualquer outro país obter a mesma derrogação especial teria, evidentemente, de passar pelo mesmo processo. Isto significaria negociar uma exceção à medida nos tratados que teria de ser aprovada por 28 países, mais de 40 câmaras parlamentares, e eventualmente através de referendos — pelo menos um, obrigatório, na Irlanda. Este processo seria necessariamente muito moroso e dificilmente bem sucedido.

#4 Mas a preparação para a saída do euro não nos dá mais força negocial para renegociar a dívida?

Pelo contrário. A instabilidade provocada recairia principalmente sobre Portugal; qualquer dos processos descritos atrás provocaria danos impossíveis de quantificar e teria resultados incertos. As consequências seriam incomparavelmente mais duras sobre Portugal do que sobre o resto da zona euro. Entre devedores e credores só são credíveis as ameaças que, se levadas a cabo, resultam em mais perdas para os segundos do que para os primeiros. Ou seja, em situações nas quais o credor possa dizer: renegoceiem ou será pior para vocês. Chegar a uma negociação com a saída do euro em cima da mesa corresponderia a dizer aos credores: renegoceiem ou será pior para nós.

#5 No entanto, sairmos do euro tornaria a nossa economia mais competitiva.

É tudo menos certo. Os economistas dividem-se sobre a eficácia das desvalorizações externas, embora o consenso seja o de que os seus efeitos são sempre temporários, pelo que a prazo a “asiatização” do mercado laboral português poderia acabar por se impor de forma ainda mais clara do que hoje. Mesmo assim, avaliemos as possibilidades. No caso de “saída desordenada” a nova moeda não seria transacionável durante um período sem termo certo. No caso de saída ordenada unilateral, Portugal teria saído da União Europeia e, logo, da sua união aduaneira e do seu mercado único, o maior parceiro comercial português. A imposição de tarifas e de outras barreiras alfandegárias acabaria por reduzir os ganhos de competitividade que a desvalorização do novo escudo trouxesse. Mas nem todos os produtos que Portugal exporta são inteiramente locais; muitos dos que agregam mais valor acrescentado incorporam materiais importados que ficariam mais caros com a desvalorização do novo escudo. A participação de empresas portuguesas em cadeias de produção internacionais seria também ameaçada pelas barreiras alfandegárias não-tarifarias, como controles de certificação de origem, apresentação de documentação na fronteira e introdução de tempos de espera incompatíveis com as práticas de montagem ao minuto hoje obrigatórias, por exemplo, na indústria automóvel. Para evitar uma fuga de capitais e um colapso do sistema bancário nacional, teríamos que instaurar um controlo financeiro no período de transição monetária, após abandonarmos a zona europeia de livre circulação de capitais, o que só beneficiaria aquela oligarquia que durante os últimos anos tivesse colocado os seus euros em bancos estrangeiros para depois comprar ativos portugueses num escudo desvalorizado. A pressão para vender património, território e recursos naturais ao desbarato aumentaria. E neste cenário, é preciso acrescentar, os portugueses teriam perdido os seus direitos enquanto cidadãos da UE — incluindo os de poder viver, estudar ou trabalhar em quase todo o continente europeu.  

#6 Mas precisamos de sair do euro para acabar com a austeridade e salvar o estado social!

Dadas as incertezas dos cenários de saída, a instabilidade prolongada e a especulação contra Portugal, é duvidoso que o país não precisasse de saldos primários mais elevados ainda. A austeridade poderia ser tão profunda como a dos tempos da troika. E, fora do espaço europeu, o custo do financiamento externo necessário seria consideravelmente mais elevado. Aos inevitáveis impactos negativos sobre o estado social teríamos de acrescentar os preços mais altos das importações, que recairiam principalmente sobre o Serviço Nacional de Saúde (nomeadamente nos medicamentos e maquinaria).

#7 O euro está a acabar, é melhor saltar fora enquanto é tempo.

O euro é a segunda divisa global; serve uma população de quase 340 milhões de pessoas, no coração da União Europeia e do maior mercado do mundo. Após as políticas desastrosas do início da crise, com a inação do Banco Central Europeu durante o consulado de Jean-Claude Trichet e a austeridade exigida por Wolfgang Schäuble (e, quando estavam no Governo, aplaudida por PSD/CDS como necessária e «regeneradora») durante a chamada crise das dívidas soberanas, puseram a moeda europeia à beira do colapso. Mais recentemente, as políticas monetárias não-convencionais de Mario Draghi permitiram fazer convergir em acentuada baixa as taxas de juros dos vários estados-membros da moeda única. O potencial do euro é imenso, mas continua gravemente limitado pela inexistência de políticas orçamentais comuns, de instrumentos de dívida à escala europeia e de uma refundação democrática da UE. Mas, avaliados os vários caminhos à nossa frente, é incomparavelmente mais realista agir para reformar a zona euro do que antecipar o seu colapso.

#8 As críticas à saída do euro servem só para assustar as pessoas!

O debate sobre a saída do euro, com informação tão completa quanto possível, é um debate importante. O LIVRE participa nesse debate, mas não apenas para alertar para os riscos a considerar numa saída desordenada do euro ou de uma saída do euro e da UE. Portugal tem mais do que um caminho à sua frente: há sempre alternativa, e a alternativa que o LIVRE defende é a da valorização das pessoas, do conhecimento e do território numa zona euro reformada e numa UE democratizada. Isto implica uma estratégia continuada, tanto no campo político como económico, de luta contra a austeridade em Portugal e na Europa. O LIVRE tem sido pioneiro nas propostas mais inovadoras de convergência política progressista no nosso país e de criação de maiorias pela democratização no espaço político europeu. Não há soluções milagrosas, mas este é o esforço que compensa — por uma esquerda mais livre, um Portugal mais igual e uma Europa mais fraterna.

Somos Europeístas e não desistimos do projeto europeu. Queremos mobilizar a cidadania para a causa da refundação e do relançamento da União Europeia, centrando o debate nessa construção.

Nós sabemos que Europa queremos. Venha construí-la connosco.